terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Intervalo


"Quando quero sentir mais leve o peso que,
em mim, de mim me pesa, ando pelas ruas da
cidade velha porque sei que a tristeza delas
é ainda maior que a tristeza minha. Vou andando
ora devagar ora depressa, e, ao olhar o que passa
ou o que fica, é de mim que parto mais pesado e
é a mim que chego mais leve. Vou andando, com uma
imobilidade que se desloca, e vejo e oiço (...).
Ando sob a luz que se vira para dentro e por isso
escurece. Ando e sei que ter destino é um erro
que não se corrige. Por isso, nos meus passos há
todas as certezas que se mudam noutras tão
incertas como essas. Ando naquele intervalo entre
o que sou ao não ser e o que não sou ao ser.
(...) vêem-me sem me conhecer e assim ficam perto
de mim, que também não me conheço, nem sequer me
vejo passar, senão imagens de um eu que não sou.
Vêem-me, e eu sei que o ver não lhes diz o que vêem.
Por isso lhes agrado ou desagrado por razões que
são mais deles do que minhas. Ando sob a claridade
que começa a ser escuridão e, enquanto as luzes
não se acendem, há um hiato entre tudo e o seu
contrário, inversão de sinais, reverso de sentidos.
Ando e oiço os que falam sozinhos ou acompanhados.
Oiço as suas palavras inúteis, gastas e repetitivas.
Oiço os que dizem apenas o que já ouviram, cópias
de um original que nunca foi deles. Oiço os
medíocres que dizem a mediocridade dos outros para
negarem a sua. Oiço os infelizes que choram
a felicidade alheia por saberem que nunca será própria.
Oiço a voz deste tempo que é feita de exclamações
baixas, gritos calmos, desesperos mansos, angústias
medidas, suicídios mudos. Oiço as vozes que se
negam na raíz e se desmentem no auge.(...)"

Excerto do sublime texto de José Manuel dos Santos
in Actual 1892 (Expresso) de 31 de Janeiro de 2009.

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