terça-feira, 1 de junho de 2010

Contra-relógio


estou nos blocos
estou num bloco para não ser falso
não é falsa a partida
parto de verdade
estou a sentir o ar da frente ficar para trás
mexo-me
corro
parece-me que rápido
estou rápido
espera
não vejo os rivais
não posso pensar nisso agora
devem estar à frente
partiram tão rápido
não deu para ver
o fumo do tiro de partida cegou-me os milésimos
e não os vi por pouco
foram-se
esforço-me
vou caçá-los
vou apanhá-los
vou ser melhor
e se não puder ser melhor vou pelo menos correr tudo o que sei
tudo o que as pernas querem
os gémeos fizeram a parte deles
e no início tive tropeços mas eles aguentaram-se e levantaram-me até chegar aos passos largos em que os quadríceps e o tronco me levantam a cabeça
agora o peito arde-me mas não posso respirar
tenho que chegar ao fim num fôlego
não ouço a multidão
a minha mãe não veio
o pai saíu para fumar
não interessa
a meta já ali está
não está ninguém à frente
nem passos atrás dos meus
devo ser o último
vão rir-se de mim
não os vi
passaram tão rápido que o fumo turvou-me
vou cortar
cortei
cortei-me
tenho uma marca no peito de uma fita dourada
não vejo nenhum
põem-me uma medalha
depois tiram-ma
anulam a corrida
não percebo nada
vão para me fazer perguntas para o jornal regional mas depois arrependem-se
vão para me dar os parabéns mas arrependem-se
a minha tia
o meu padrinho
o meu irmão
a minha mãe
o meu primo
o meu pai
vão para me beijar mas estacam
estacam todos e até eu
estacamos todos a olhar para os blocos
somos blocos
estão nos blocos
os poetas ficaram nos blocos a beber chá
pensei que a corrida fosse para ganhar
e então corri
não sabia que era para beber chá
não trouxe saquinho
trouxe o saco que tem uma toalha e uma garrafa de água
mas o saquinho de chá deixei na casa da minha avó
à minha espera para ficar forte
e volto para trás numa corrida lenta ao contrário
provo-vos o chá
e cansado bebo-o para me despertar
mas fraquinho tombo porque o saco que vos deram era pequeníssimo e só dava para todos
se sabia tinha ficado para trás de propósito para ser como são
não sabia
não fiquei
assim sou eu
fiquem comigo por favor que eu não tenho com quem ficar


João Negreiros, In a verdade dói e pode estar errada

Tenho a noção que, por vezes,
arranco,
acelero,
não espero,
fico à frente,
sem olhar para o lado...
sem me preocupar com quem está a(d)o meu lado...
Faço a corrida sozinho,
dito o meu ritmo,
objectivo
e vivo...
muito...
intensamente...
como se não houvesse amanhã...
Prefiro 1.000 vezes correr para(por) Ti!

11 comentários:

Sparkle disse...

Lindissimo. q saudades de gente inspirada e inspiradora!

PSousa disse...

Sparkle e as saudades que tenho de Ti...

Bj doce

Anónimo disse...

como se não houvesse amanhã... adorava tudo como se não houvesse amanhã...

Aime disse...

dizem que o sofrimento, o ódio, a paixão,... são o "alimento" da inspiração de muitos criadores. Porém, é extenuante viver constantemente com estes sentimentos limites! A evolução para outra fase é inevitável e temos de ser nós a dar o primeiro passo.
baci dolce

só 1 mulher disse...

"fiquem comigo por favor que eu não tenho com quem ficar"

esta última frase é de uma força!
Gosto desta escrita solta

1 beijinho

utopista disse...

Corro...

e recorro...

do recobro.

PSousa disse...

Sparkle,

também a sentir saudades tuas e da tua escrita...

Reencontramo-nos... aqui ou noutro lado qualquer ;)

Bj doce

PSousa disse...

Mana,

eu adoro mesmo... e o amanhã é longe demais... ;)

Bj

PSousa disse...

Aime,

felizmente o ódio creio que nunca senti por ninguém... o sofrimento, felizmente, costuma ser momentâneo... não dura muito e é ultrapassável (se bem que da última vez, custou bastante)...
Paixão? Sempre que posso, sempre que a encontro :)
Evoluir? Todos os dias o sinto ;)

Bj

PSousa disse...

Só,

a frase é mesmo brutal...

Obrigado pelos teus comentários.

Bj doce

PSousa disse...

Mano, o meu recobro foi este fds... em falta para ctg. amanhã matamos saudades!

Ab