quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Como Esquecer

Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa – como é que se faz quando a pessoa que se precisa já não está lá?
As pessoas têm de morrer, os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar. Sim, mas como se faz? Como se esquece?
Devagar. É preciso esquecer devagar.

Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas!
É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso primeiro aceitar.
É preciso aceitar esta mágoa, esta moínha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados, se tivessem apenas o peso que têm em si, isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução.

Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha.
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.
Porque é nos momentos em que estamos mais cansados ou mais felizes que sentimos mais a falta das pessoas que amamos? O cansaço faz-nos precisar delas. Quando estamos assim, mais ninguém consegue tomar conta de nós. O cansaço é uma coisa que só o amor compreende. A minha mãe. O meu Amor. E a felicidade. A felicidade faz-nos sentir pena e culpa de não podermos partilhar. É por estarmos de uma forma ou de outra sozinhos que a saudade é maior.
Miramar, by K
Mas o mais difícil de aceitar é que há lembranças e amores que necessitam do afastamento para poderem continuar. Afonso Lopes Vieira dizia que Portugal estava tão mal que era preciso exilar-se para poder continuar a amar a pátria dele. Deixar de vê-la para ter vontade de a ver. Às vezes a presença do objecto amado provoca a interrupção do amor. É complicado o curto-circuito, o encurralamento, a contradição que está ali presente, ali, na cara do coração, impedindo-o de continuar.
As pessoas nunca deveriam de morrer, nem deixarem de se amar, nem separar-se, nem esquecer-se, mas morrem e deixam-se e separam-se e esquecem-se. Custa aceitar que os mais velhos, que nos deram vida, tenham de dar a vida para poderem continuar vivos dentro de nós. Mas é preciso aceitar. É preciso aceitar. É preciso sofrer, dar uns murros na mesa, não perceber. E aceitar. Se as pessoas amadas fossem imortais perderíamos o coração. Perderíamos a religiosidade, a paciência, a humanidade até.
Há uma presença interior, uma continuação em nós de quem desapareceu, que se ressente do confronto com a presença exterior. É por isso que nunca se deve voltar a um sítio onde se tenha sido feliz. Todas as cidades se tornam realmente feias, fisicamente piores à medida que se enraízam e alindam na memória que guardamos delas no coração. Regressar é fazer mal ao que se guardou.
Uma saudade cuida-se. Nos casos mais tristes separa-se da pessoa que a causou. Continuar com ela, ou apenas vê-la pode desfazer e destruir a beleza do sentimento, as pessoas que se amam mas não se dão bem só conseguem amar-se quando não se dão.
Mas como esquecer? Como acabar com aquela dor? É preciso paciência. É preciso sofrer. É preciso aguentar.
Há grandeza no sentimento. Sofrer é respeitar o tamanho que teve um amor. No meio do remoinho de erros que nos revolve as entranhas, da raiva, do ressentimento, do rancor – temos de encontrar a raiz daquela paixão, a razão original daquele amor.
As pessoas morrem, magoam-se, separam-se, abandonam-se, fazem os maiores disparates com a maior das facilidades. Para esquecê-las, é preciso chorá-las primeiro. Esta é uma verdade tão antiga que espanta reparar em como ainda temos esperanças de contorná-la. Nos uivos das mulheres nas praias da Nazaré não há «histerias» nem «ignorância» nem «fingimento». Há a verdade que nós os modernos, os tranquilizados, os cools, os cobardes, os armados em livres e independentes, os tanto-me-fazes, os anestesiados, temos medo de enfrentar.
Para esquecer uma pessoa não há vias rápidas, não há suplentes, não há calmantes, ilhas nas Caraíbas, livros de poesia – só há lembranças, dor e lentidão, com uns breves intervalos pelo meio para retomar o fôlego.
Esta dor tem de ser aguentada e bem sofrida com paciência e fortaleza. Ir a correr para debaixo das saias de quem for é uma reacção natural, mas não serve de nada e faz pouco de nós próprios. A mágoa é um estado natural. Tem o seu tempo e o seu estilo. Tem até uma estranha beleza.

Nós somos feitos para aguentar com ela.
Podemos arranjar as maneiras que quisermos de odiar quem amamos, de nos vingarmos delas, de nos pormos a milhas, de lhe pormos os cornos, de lhe compormos redondilhas, mas tudo isso não tem mal. Nem faz bem nenhum. Tudo isso conta como lembrança, tudo isso conta como uma saudade contrariada, enraivecida, embaraçada por ter sido apanhada na via pública, como um bicho preto e feio, um parasita de coração, uma peste inexterminável, barata esperneante: uma saudade de pernas para o ar.
O que é preciso é igualar a intensidade do amor a quem se ama e a quem se perdeu. Para esquecer, é preciso dar algo em troca. Os grandes esquecimentos saem sempre caros. É preciso dar tempo, dar dor, dar com a cabeça na parede, dar sangue, dar um pedacinho de carne.
E mesmo assim, mesmo magoando, mesmo sofrendo, mesmo conseguindo guardar na alma o que os braços já não conseguem agarrar, mesmo esperando, mesmo aguentando como um homem, mesmo passando os dias vestido de preto, aos soluços, dobrado sobre a areia da Nazaré, mesmo com muita paciência e muita má vontade, mesmo assim é possível que não se consiga esquecer nem um bocadinho.
Nazaré, by K
Quanto mais fácil amar e lembrar alguém – uma mãe, um filho, um grande amor – mais fácil deixar de amá-lo e esquecê-lo. Raio de sorte, ó lindeza, miséria suprema do amor. Pode esquecer-se quem nos vem à lembrança, aqueles de quem nos lembramos de vez em quando, com dor ou alegria, tanto faz, com tempo e com paciência, aqueles que amámos com paciência, aqueles que amámos sinceramente, que partiram e nos deixaram, vazios de mãos e cheios de saudades.
E quando alguém está sempre presente? Quando é tarde. Quando já não se aguenta mais. Quando já é tarde para voltar a trás, percebe-se que há esquecimentos tão caros que nunca se podem pagar. Como é que se pode esquecer o que só se consegue lembrar? Aí, está o sofrimento maior de todos. O luto verdadeiro. Aí está a maior das felicidades.

In Último Volume, de Miguel Esteves Cardoso

Muitos me perguntam como se esquece, quase todos os dias/noites...
Nem eu próprio tenho resposta alguma... porque não esqueço... os bons momentos que vivi...
MEC talvez a tenha...

Regressar à Nazaré... uma certeza, para breve...

17 comentários:

F disse...

Obrigada pelo belíssimo texto. O MEC consegue deixar-me sempre sem palavras...

Anónimo disse...

«Mas o mais difícil de aceitar é que há lembranças e amores que necessitam do afastamento para poderem continuar.»


Optamos por não falar, ou falar menos...

K, é muito fácil, para qualquer ser apaixonar-se por ti. És viciante. Esquecer jamais. Quem te conhece percebe exactamente o que estou a dizer.
MEC tem toda a razão quando diz « É por isso que nunca se deve voltar a um sítio onde se tenha sido feliz.(...) Regressar é fazer mal ao que se guardou.»
Eu não volto.




Beijos meus.
[Se me esqueceres, só uma coisa, esquece-me bem devagarinho. Mário Quintana]

Em anónimo, porque sim.

Pedro Ferreira disse...

Mister,
Nunca se esquece!

A Respigadeira disse...

"A razão por que a despedida nos dói tanto é que nossas almas estão ligadas. Talvez sempre tenham sido e sempre serão. Talvez nós tenhamos vivido mil vidas antes desta e em cada uma delas nós nos encontramos. E talvez a cada vez tenhamos sido forçados a nos separar pelos mesmos motivos. Isso significa que este adeus é ao mesmo tempo um adeus pelos últimos dez mil anos e um prelúdio do que virá."

"O Caderno de Noah" de Nicholas Sparks

Um beijo

Rui Lança disse...

Mais um belo post, sim senhor meu Amigo!

Felizmente não temos 'esse' botão do esquecer.

Gelo disse...

eu cá fixei a parte do "aguenta" e não sei porquê lembrei-me do arquitecto :)))

eu sei, eu sei, mas alguém tinha que abardinar isto :))

grande abr,

PSousa disse...

F,

provocando um bocadinho... diria que não é só o MEC ;)

Beijo doce de saudades infinitas

PSousa disse...

A TTi que me viciaste com ópio mental, eu escrevo que és demasiado simpática comigo... tu que me deste um verdadeiro ensaio sobre a cegueira...

Saudades das nossas conversas desafiantes ou simplesmente saudades de TTi...

Esquecer? No teu caso, é impossível esquecer dias e noites loucas em branco, muito coloridas...

Anónima, mas a deixar pistas para te encontrar... e o Sherlock que está quase a chegar...

Beijo em TTi

PSousa disse...

Pedro,

eu também espero nunca me esquecer de agradecer ter Amigos como Tu!

Abraço

PSousa disse...

Clara, lindo demais!

Engraçado, como mais uma vez pegaste numa «fórmula» que eu utilizo habitualmente... a de chamar «vidas» aos momentos que partilho com determinadas pessoas... sejam esses momentos, quinze dias ou oito anos... valem por vidas de mil anos...

Obrigado por existires, Amiga (atrevo-me)!

Bj

PSousa disse...

Rui,

perante estes testemunhos é mesmo impossível, não?
;)

Abraço, Amigo!

sininho disse...

fico assim... sem ar, sem saliva... a sentir o pulso aos pulos no colo...
thanks!

Sparkle disse...

Distrai-se uma pessoa a trabalhar e quando aqui volta é isto… toneladas de coisas interessantes para processar. e eu a achar que sou rapida nessa coisa de fazer “upload de coisas a digerir” 
Com a tua licença vou citar isto no meu blog porque há aqui muita coisa para ser dita e bradada.
Mesmo que tenha sido escrito por MEC, foi relembrado por ti… tem graça levar para a “cabeça”a anestesia do coração que se quer evitar e sentir até deixar de sentir..
PS: Adorei as fotos.

CarlaSofia disse...

Olá K, julgo que jamais esquecemos alguém que nos toca a alma. Há realmente pessoas importantes na nossa vida, que nos ajudaram a crescer, que nos deram muito amor e amizade ou que nos fizeram sofrer e muito! De uma forma ou de outra, essas pessoas surgem na nossa vida para podermos experienciar sentimentos, emoções e pensamentos diferentes, intensos.
Esquecer eu não esqueço, mas aprendo a perdoar quando se trata de alguém que me fez passar pela experiência da desilusão (na verdade, fui eu que me iludi...)ou aprendo a recordar o bom, quando se trata de alguém de quem tenho muitas saudades...
Esquecer um lugar especial, também não esqueço, para quê? sempre que o recordo é como se lá estivesse de novo :)
beijinhos*
~universosquestionáveis~

PSousa disse...

Sininho, a agradecer... temos de o fazer ao MEC pelo brilhantismo (ainda este fds no I)!

Ainda tenho algo mais a acrescentar, mas que já todos conhecem ;

Beijo e Feliz Natal

PSousa disse...

Sparkle,

muito obrigado pelas palavras e pela citação, já agradecida em local próprio ;)
Ao contrário do que escreves, ando arredio de inspiração... talvez anestesiado... ;)
mas prometemos voltar mais fortes brevemente...

Feliz por gostares das imagens... as tuas escolhas são igualmente fantásticas...

Bj

PSousa disse...

Carla,
muito de acordo com o que escreves... as always ;)
Apenas para assinalar que mesmo do menos interessante, podemos tentar recuperar algum momento positivo ou alguma lição que nos sirva para o futuro...

Eu não esqueço... e para relembrar uso também este meio ;)

Beijo e desejo de um Feliz Natal